sábado, 20 de outubro de 2012

O BRASIL, A NOVA CLASSE C E UMA AVENIDA NA FICÇÃO

Nina (Débora Falabela). Em segundo plano, Carminha (Adriana Esteves)
e a pequena Rita/Nina (Mel Maia). Foto: Divulgação
 
Agora que Avenida Brasil acabou vamos voltar à nossa realidade. Com esta frase, tem-se uma alusão sobre o que o poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu em sua coluna da Folha de S.Paulo, em 11 de julho de 1978, após o final da primeira versão de O Astro, de Janete Clair: “Agora que ‘O Astro’ acabou, vamos cuidar da vida, que o Brasil está lá fora esperando.”. No texto intitulado Novela total, Drummond expõe o que uma novela de grande repercussão faz com a opinião pública.  
 
Décadas depois, várias mudanças tecnológicas aconteceram na televisão brasileira. O seleto grupo de autores está se renovando. A imagem mudou. Estamos em uma era de alta definição. A televisão por assinatura abriu diversas possibilidades de opção para o telespectador mais exigente. Mas o produto, sim porque a televisão como empresa, considerada parte de uma indústria cultural, produz a novela como um produto, e aí temos o famoso merchandising, “o produto dentro de um produto”. Mas para que a propaganda dentro da novela seja bem sucedida, obviamente a história deve ser bem aceita para se justificar os altos pontos no Ibope. Embora Avenida Brasil ter abusado de  algumas inserções explícitas de merchan, quando algum personagem só faltava gritar que estava usando determinada marca. Isso soa falso e desnecessário. Em tempos que a medição do citado instituto de pesquisa já não corresponde como na época de O Astro de 1977, a recém-concluída novela das 21 horas já é indicada na mídia como um grande êxito. Basta detectar o que as redes sociais, ferramentas modernas de comunicação, capazes de criar conflitos em países árabes, dizem sobre a trama de João Emanuel Carneiro e equipe.

Muitas são as explicações sobre os “Oi, oi, ois” do Twitter ou no Facebook. Os comentários gerais sobre a novela no ônibus, no salão de beleza ou no bar se manifestam pela história que nos fascina. Hoje, com uma edição bem feita no computador, qualquer um pode ter sua imagem congelada igual aos dos efeitos que encerram os capítulos. O “gancho”, recurso de  prender a atenção do telespectador ao final do capítulo ou de um bloco, aliado à qualidade cinematográfica, direção precisa de atores renomados e afinados e uma direção segura fizeram com que a trama deslanchasse como há anos não se via. O “gancho”, na verdade, vem do folhetim do século 19 – a história parcelada em capítulos publicada em jornais, um artifício que aumentava a venda dos periódicos. E ligamos isso à atualidade.
As histórias parecem se repetir. A luta entre o bem e o mal. Mocinho e bandido. Vilãs perversas e mocinhas chorosas. A diferença e o valor de uma obra consiste no modo como ela nos é apresentada. Não vimos nada de novo em Avenida Brasil em termos de ingredientes narrativos, mas o sabor de acompanhá-la diariamente, apesar da famosa “barriga” (aquele momento em todas as novelas a história pouco muda e tudo parece enrolação), é o que mexe com o público e o faz torcer por este ou aquele personagem. Nina (Débora Falabella) não é mais aquela mocinha de outrora, que sofria nas mãos da vilã e só encontrava a felicidade no último capítulo. Aqui a mocinha também tem os seus defeitos. Nina é movida pela vingança. Ela precisou mentir, enganar pessoas queridas para atingir seu objetivo, o de destruir sua antagonista, Carminha. O brasileiro se identificou com Nina porque a vingança pode ser gerada em qualquer ser humano oprimido. Acompanhar a história parece ser um modo não de alienação, como muitos intelectualóides fundamentalistas preferem chamar o simples ato de assistir uma novela, mas um estado, mesmo temporário, de rejeitar a realidade perversa que o persegue.
E por falar em Carminha, as salvas para Adriana Esteves. Desde a Sandrinha de Torre de Babel (1998), é que não víamos uma Adriana tão vigorosa. Pelo seu desempenho, ela é apontada como uma das melhores atrizes do ano e tem grandes chances de levar os prêmios em 2013.
E destaques no elenco é o que não falta. Do lado dos veteranos, vemos um Marcos Caruso tão à vontade que somos capazes de encontrar um Leleco na esquina de casa. Aliás, um tipo representante de uma classe C que não abandona os hábitos suburbanos mesmo depois de enriquecer. Vera Holtz e José de Abreu, a personificação dos miseráveis. Uma Lucinda vivendo ao lado da ternura e da amargura. Um Nilo malandro, esfomeado, demonstrando tudo que a mágoa de ter sido traído pela mulher construiu durante sua vida. Juliano Cazarré fez de seu Adauto brilhar a cada capítulo, pontuando entre o patético romântico e ingênuo.  Dos estreantes, o que dizer da pequena Mel Maia (a Rita pequena), que mostrou uma segurança que poucos atores mirins conseguem passar nos primeiros trabalhos? Essa menina, se quiser, tem tudo para seguir o caminho de Glória Pires. E Cláudia Protásio, a impagável Zezé, que virou febre nas redes sociais, estrelando até vídeo viral produzido para o Youtube? Ela fez uma dobradinha perfeita com Carminha quando se aliou à vilã. Letícia Isnard, Cláudia Missura e até a volta de Betty Faria à Globo... Enfim, muitos se sobressaíram. Nem espaço tenho para tantas menções.
Alguns pontos negativos para João Emanuel Carneiro. O roubo das cópias das fotos que comprometem Carminha e Max (Marcelo Novaes). Uma bola fora em tempos de pen drive, email e outros recursos para armazenamento virtual de arquivos. Analfabetismo digital imperou aqui. O outro é como a personagem Jéssica (Patrícia de Jesus) foi mal aproveitada na trama. No início, para quem se lembra, ela morava no lixão e foi ajudada pela pequena Rita quando desmaiava de fome. Depois a dedurou para Nilo em troca de um par de sandálias. Já adulta, trabalhando na butique de Diógenes (Otávio Augusto) no Divino, apareceu em pouquíssimas cenas e seus diálogos eram mínimos. Jéssica poderia ter uma ligação no núcleo da nossa protagonista. Um erro para uma jovem atriz que teve experiências em novelas da Record e SBT.
Erros à parte, que não comprometeram a trama por completo, ressalta-se a maneira que o autor  retratou a classe C. Não uma depreciação, mas sim um espelho refletido, uma crítica através das polêmicas (e preconceituosas) opiniões de Verônica (Débora Bloch).  Ainda, quando esta nova camada social tem acesso à filmes alternativos. Lembra da cena do filme Noites de Cabíria, de Fellini, na casa de Tufão (Murilo Benício) e os comentários de Muricy (Eliane Giardini) durante a exibição do filme? Essa referência deixa claro que cultura é algo que não se adquire com o dinheiro, você deve ter o bom senso de obtê-la, independente de sua simpatia por este ou aquele gênero, com as condições que tiver.  Tufão que o diga. Ele experimentou a leitura de grandes clássicos da literatura brasileira e universal ao ser flagrado lendo por exemplo Franz Kafka ou Machado de Assis. Ao sugerir esses livros, a cozinheira Nina não estaria abrindo os olhos do milionário ex-jogador para que deixasse de ser um homem fraco e medíocre? Esta é ou não uma dica para essa nova classe que está emergindo?
Avenida Brasil se despede, com audiência muito satisfatória, com a destreza de mobilizar até campanhas políticas, desmarcar compromissos até então inadiáveis. E esperamos encontrar futuramente tramas igualmente instigantes, que estejam novamente na boca do povo. Novelas são entretenimento, sem dúvida, fazem parte da história da televisão. E provocam aquela sensação de cenas repetidas, mas o tratamento das obras é o que vai transformá-las em destaque nacional.
 
Fonte

Acervo Folha S.Paulo, 11/07/1978:
"Novela total", de Carlos Drummond de Andrade; Caderno Ilustrada, pág. 40:

 

Mais
Os livros que Tufão leu em Avenida Brasil:
 
O Idiota – Dostoievski
 
Dom Quixote – Miguel de Cervantes
 
Dom Casmurro – Machado de Assis
 
O Alienista – Machado de Assis
 
Memórias Póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis

O Banquete – Platão
 
O Primo Basílio - Eça de Queiroz
 
A Metamorfose – Franz Kafka
 
Madame Bovary – Gustave Flaubert
 
A Interpretação dos Sonhos – Sigmund Freud
 
E até Mãe Lucinda surgiu lendo Alice no País das Maravilhas, de Lewis Caroll.